quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Meu mundo cor de rosa acinzentado

Eu devia ter em torno de 5 anos. Estava voltando da aulinha de balé com o motorista e meu irmão mais velho (que voltava da aula de judô). Eu estava sentada no banco da frente, ao lado do motorista (estamos falando de 1988, não existiam regras de cadeirinha para criança, nem mesmo criança só no banco de trás e com cinto), eu só estranhei porque ele mandou eu ir na frente e não o meu irmão, afinal, ele era o mais velho e era o homem (sim, essa diferença entre homens e mulheres tinha nessa época, não importava a idade).
Morávamos longe da cidade, em uma vila dos funcionários de uma usina. Então passávamos sempre por estradas não povoadas. Era noite, meu irmão queria fazer xixi. O motorista, então, parou o carro e meu irmão desceu para fazer perto do mato. Eu continuei no carro. Lembro que no meu colo estava um saco de leite gelado recém comprado na padaria (sim, saco plástico, não era caixa de leite longa vida de hoje em dia). Foi aí que senti a mão do motorista entre meu corpo e o leite. Pegou na minha genitália e nas minhas pernas. Eu estava tensa, nervosa, não sabia o que fazer. Não entendia o que era aquilo, mas que eu não gostava nem um pouco do que estava acontecendo.
Não lembro mais do que aconteceu depois disso, afinal, foram 30 anos atrás. Mas o que sei (e que não imaginava naquela época) é que isso me marcaria negativamente por muitos anos. Quando eu era adolescente, estava em um cinema no centro da cidade (nessa época eu já morava em cidade grande) eu estava sentada assistindo a um filme e percebi que um homem ao lado estava com um espelho tentando olhar entre minhas pernas. Eu podia ter gritado, ter jogado algo nele, ter feito qualquer coisa, mas não consegui mais nada além da inércia.
Minha adolescência foi bem complicada. Tive muitos problemas com minha mãe. Na verdade, desde a infância eu já sentia o tratamento diferenciado dela entre eu e meus irmãos, principalmente com o mais velho. Lembro de todas as vezes ela sequer me ouvir e escolher apoia-lo, sempre parcial. Isso me marcou muito. Eu não me sentia amada por ela e inúmeras vezes pensei que eu fosse filha de algum caso extraconjugal do meu pai e por isso ela me detestava daquela forma, mas éramos tão semelhantes fisicamente que essa hipótese não se encaixava.
Não sabia eu que essa ausência de amor da minha mãe iria também influenciar em todos os meus relacionamentos. Eu sempre tive medo de me entregar por completo a alguém, ora bolas, se a minha própria mãe, que era para ser meu vínculo de confiança, era a primeira a jogar a pedra, em quem mais eu confiaria?
Mas eu tinha um pai maravilhoso... e todas as vezes que eu sentia inveja das minhas amigas com as mães carinhosas e cuidadosas, eu lembrava que o meu pai era o melhor de todos, sem comparações. Sabia que Deus era justo. Ele não me daria um pai daqueles sem me dar nada com que aprender em troca.
Foi então que, em 2002, meu mundo desabou.
Meu pai, que sempre esteve presente, mesmo viajando mundo a fora a trabalho, não voltaria mais. Eu havia falado com ele na noite anterior porque eu estava doente e só ele conseguiria me dar o dengo que eu precisava, mesmo que por telefone. Fui dormir. Acordei com minha mãe e meus padrinhos no meu quarto me dando a notícia que meu pai tinha falecido no México. Eu quis quebrar tudo, quis me jogar, quis me quebrar. Culpei minha mãe, claro. Oras, meu pai havia pedido o divórcio, eu já estava morando com ele (e feliz da vida por me sentir bem em casa pela primeira vez), mas como ele foi viajar, eu tive que ir para a casa da minha mãe e foi lá que recebi a notícia.
Após meu pai pedir a separação, minha mãe não conseguia mais fingir a mãe boazinha. Ela descaradamente mostrou que seria capaz de tudo para conseguir o que queria. Ela ameaçou matar os 3 filhos com uma peixeira se meu pai não voltasse para casa e chegou a colocar fogo em casa com os três filhos dentro. Foi aterrorizante. Então, depois de tudo isso que eu estava vivendo, receber a notícia que eu não teria mais meu protetor por perto foi devastador. Ele faleceu longe de todos que o amava. Ele era tão saudável, tinha emagrecido, estava fazendo exercícios regularmente, estava no auge dos seus 48 anos, mas sofreu um infarto fulminante.
Pior que perder seu pai e morar na mesma casa que uma mãe que ameaçou te matar por ele é ouvir ela dizer diariamente que “Deus é muito bom comigo, tirou o mal que havia nesta casa”. Se alguma mãe estiver lendo esse texto, jamais, eu disse JAMAIS, seja tão insensível e egoísta com seus filhos.
Quando eu estava recomeçando minha vida, longe de uma pessoa doentia, morando em outro estado, viajando para a Russia pelo meu mestrado, recebo uma ligação. Era sobre meu irmão mais velho. Ele havia se suicidado. Socorro, muita dor de uma vez só. Eu estava grávida, 3 meses, recém separada do pai da minha filha, querendo o colo do meu pai... mas eu não tinha mais pai, não tinha mais meu irmão mais velho, o chão que eu estava reconstruindo era de papel. Meu mundo cor de rosa estava cinza de novo e eu não conseguia mais enxergar.

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